Chamava-se Oscar. Todos os dias, acordava cedo, já estressado, para ir trabalhar nas suas coisas de engenharia. Comia mal com tanta responsabilidade, mas ao fim do dia, quando chegava a tempo de ir buscar o filho mais velho à paragem de autocarro, sentia-se feliz e realizado. Ganhava bem, tinha uma família bonita, o esforço valia a pena.
Um dia, o governo e a gente de poder decidiram zangar-se uns com os outros. Não como as zangas de crianças, do “não falo mais contigo”. Zangas de gente com dinheiro, com ganância, que não se contenta em chegar a casa e jantar a ouvir as histórias da mulher, as primeiras palavras da filha pequena, a ler um livro nos 10 minutos de sossego que tem antes de ir dormir.
As zangas desta gente que quer mais a todo o custo, leva esse custo a outras vidas. À do Oscar, por exemplo. Que nunca se meteu com ninguém, que cresceu na vida e criou um lar próspero e feliz com as próprias mãos, sem passar por cima de ninguém. As zangas por quererem um pedaço de terra, um mundo mais de submissão, levou a que a vida do Oscar se fosse desmoronando. Pouco a pouco, de início. Com choque, espanto. Mas depois com medo, pânico, corpos onde não deviam estar.
O Oscar gostava muito da sua vida. Do seu trabalho, da sua televisão panorâmica, de ir andar de bicicleta com a família ao fim de semana, dos encontros com os amigos de longa data. Mas tinha medo. Medo de perder tudo isso por uma zanga que não era a sua. O número de corpos na estrada aumentava, ele não queria deixar-se perder. Pensou muito, desesperou muito.
Até que cedeu. O seu país já não era seu. As ruas onde andava de bicicleta estavam negras de sangue, ódio e medo. Não queria que a sua família crescesse assim, não queria temer pela suas vidas, não queria que lhe acontecesse o mesmo que ao seu vizinho com a casa incendiada.
Pensou muito, não foi de ânimo leve que se vestiram os quatro com uma mochila, cada um com o que lhes valia mais, à vida ou ao coração. Os quilómetros foram muitos, a fome, o medo, o viver escondido. Com o seu telefone podia ir descansando o resto da família que já estava noutras terras, podia ganhar coragem para também ele meter a sua família num barco do inferno.
Negociou. Esperou que o seu dia de sorte azarenta chegasse, que o chamassem. A meio da noite, meteu a sua família num barco super-lotado, num barco que se afundava ainda em terra. Entrou, com pânico por ele e pelos seus. Temeu tanto. O motor não dava conta de tanto peso de corpos, a escuridão não lhes indicava o caminho. Foi um Deus qualquer que o fez.
Chegaram a terra de outros. Com ajuda de corajosos que se atiraram à água por eles, por salvarem mais um colete com vida. Pisaram a terra escorregadia, os olhos dos seus filhos já tinham visto demais para poderem reagir. Não sabia o que os esperava para além daquela praia. Mas ao menos aí, na praia, receberam um sorriso, um abraço e uma manta quente. Ao menos, nessa praia, receberam um pouco de esperança.